quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Dos regimes jurídicos de proteção aos conhecimentos tradicionais – objetivo e subjetivo

Jussara Maria Pordeus e Silva

Palavras-Chave: Propriedade Intelectual – Biodiversidade – Conhecimento Tradicional

Resumo: A proteção dos conhecimentos tradicionais é uma questão ingente, sobretudo ante o processo de utilização global do saber local, que faz uso desses saberes geralmente sem autorização e sem repartição de dividendos com as populações locais. A ausência de controle, por outro lado, do que é extraído das florestas brasileiras, como plantas, fungos e microorganismos e, após manipulação, patenteados no exterior, é fato inquestionável. A vulnerabilidade da proteção do saber dos povos tradicionais – indígenas, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, entre outras comunidades nativas -, que continuam sendo aproveitados de maneira indevida com o objetivo do fabrico de novas drogas, cosméticos ou biomateriais, sem contrapartida a esses povos da floresta e demais detentores desses conhecimentos, é inegável. Este artigo analisa o sistema de proteção do conhecimento tradicional, tanto como bem corpóreo, quanto incorpóreo.

1. O conhecimento tradicional como patrimônio imaterial – Tutela objetiva – Dano Moral Coletivo
A concepção de que o patrimônio integra tanto aspectos materiais, corpóreos, quanto imateriais, incorpóreos, foi se formando gradativamente. Essa interpretação deu origem a imprescindibilidade de regulamentação da proteção aos bens incorpóreos, considerando serem muito mais suscetíveis às mutações que atingem a humanidade.
A partir de 2001, com a edição da Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural, pela UNESCO, firmou-se o entendimento de que a cultura deve ser considerada como: “o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abarca, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.
O artigo 1º da referida Declaração trás a definição do que seja diversidade cultural da seguinte forma: “se manifesta na originalidade e na pluralidade das identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é tão necessária para o gênero humano como a diversidade biológica para os organismos vivos [...], constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras”.
E o artigo 7º, da mesma Declaração, classifica a diversidade cultural como patrimônio comum da humanidade e coloca a sua preservação como necessária para a criatividade humana: “Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, mas se desenvolve plenamente em contacto com outras culturas. Esta é a razão pela qual o patrimônio, em todas as suas formas, deve ser preservado, realçado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e inspirar um verdadeiro diálogo entre as culturas”.
Mas até aí uma conexão direta entre diversidade cultural e conhecimentos tradicionais ainda não estava evidenciada. Somente com o Anexo II das Orientações Principais do Plano de Ação para a aplicação da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural é que a relação, entre diversidade cultural e os conhecimentos tradicionais, foi exteriorizada, na medida em que o art. 14 desse documento deixou clara a necessidade de respeitar e proteger os sistemas de conhecimento tradicionais, em especial os dos povos indígenas e de se reconhecer a contribuição dos conhecimentos tradicionais, em particular no que diz respeito à proteção do meio ambiente e à gestão dos recursos naturais, favorecendo, assim, as identidades entre a ciência moderna e os conhecimentos locais.
Em 2002 esse entendimento foi ratificado durante a Terceira Mesa Redonda de Ministros da Cultura, realizada em Istambul, dando origem a denominada Declaração de Istambul. Nesse documento, ficou consagrado que o patrimônio cultural incorpóreo "constitui um conjunto de práticas vivas e constantemente recriadas, conhecimentos e representações, que capacita os indivíduos e comunidades de todos os níveis a expressar sua concepção de mundo através de sistemas de valores e padrões de ética".
Em 2003 definiu-se com maior precisão o tema, durante a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial – mais tarde aprovada pela UNESCO –, aperfeiçoando-se os entendimentos já desenvolvidos em 2001 e 2002 já referidos, chegando-se à uma definição de patrimônio imaterial como: “os usos e costumes, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são inerentes – que as comunidades, os grupos e em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”.
E, conforme o que ficou convencionado nesse documento, o patrimônio imaterial se transmite de geração em geração e é “recriado constantemente pelas comunidades e grupos em função de seu entorno, sua interação com a natureza e sua história, infundindo-lhes um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito da diversidade cultural e a criatividade humana”.
Ainda segundo esse texto, o patrimônio incorpóreo pode se manifestar das seguintes formas: a) nas tradições e expressões orais, incluído o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) nas artes de espetáculo; c) nos usos sociais, rituais e atos festivos; d) nos conhecimentos e usos relacionados com a natureza e no universo; e) nas técnicas artesanais tradicionais.
Também foram descritas no parágrafo 3º do art. 2º medidas, tanto para garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial (identificação, documentação, investigação preservação, proteção, promoção valorização transmissão), como para revitalização desse patrimônio, como uma forma de tentar amenizar o descompasso existente entre a Convenção da Diversidade Biológica e a Organização Mundial da Propriedade Industrial-OMPI, sem olvidar e nem retirar o mérito das iniciativas anteriores da UNESCO, tomadas até com certo altruísmo.
Quanto a compatibilidade da Convenção com outros instrumentos internacionais, ficou explicitada no art. 3º, no sentido de que: “Nenhuma disposição da presente Convenção poderá ser interpretada de tal maneira que afete os direitos e obrigações que tenham os Estados-Partes em virtude de outros instrumentos internacionais relativos aos direitos de propriedade intelectual ou à utilização dos recursos biológicos e ecológicos dos que sejam partes”.
E como as normas que disciplinam a propriedade intelectual continuaram a servir de empecilho para a proteção aos conhecimentos tradicionais, então já reconhecidos como patrimônio imaterial, em 2005 houve uma nova investida no sentido de superar esse obstáculo lançando-o como objeto de discussão na Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, firmada pela UNESCO em Paris.
Nessa oportunidade ficou convencionado que a diversidade cultural é uma característica essencial da humanidade, constituindo, em si, um patrimônio que deve ser valorado e preservado. De igual modo, ficou acordado que a incorporação da cultura como elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacional e internacional e a importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza material e imaterial, são úteis à sustentabilidade .
Buscando equilibrar os interesses e valores a proteger, de um lado ficou evidenciada a importância dos direitos de propriedade intelectual para sustentar os que participam da criatividade cultural no preâmbulo deste documento e, de outro lado, ficou expresso também que a criatividade cultural não deve ser tratada apenas em seu valor comercial. Desse modo, a diversidade cultural se revela “não só nas diversas formas nas quais se expressa, enriquece e transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade de expressões culturais, mas também através de distintos modos de criação artística, produção, difusão, distribuição e desfrute das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias utilizados”.
Uma previsão importante adotada nessa Convenção foi em relação a situações especiais em que expressões culturais estejam sendo ameaçadas, corram risco de extinção ou requeiram algum tipo de medida urgente para a sua proteção.
No dispositivo que prevê a relação da Convenção com outros instrumentos internacionais – art. 20 – ficou estabelecido que esse relacionamento seria de “reforço mútuo, complementar e de não subordinação”. Ademais, ficou acordado que os Estados- Partes não devem subordinar a Convenção aos demais tratados e que: “a) fomentarão a potenciação mútua entre a presente Convenção e os demais tratados dos quais são parte; e b) quando interpretem e apliquem os demais tratados de que são Parte ou contraiam outras obrigações internacionais, terão em conta as disposições pertinentes da presente Convenção”.
Mas, um tanto contraditoriamente e para amenizar a previsão do art. 20, a Convenção estabelece em seguida que: “Nenhuma disposição da presente Convenção poderá interpretar-se como uma modificação dos direitos e obrigações das Partes que emanem de outros tratados internacionais dos que sejam parte”.
Essa Convenção precisava ser ratificada por trinta Estados membros, pelo menos, para poder entrar em vigor, o que se fazia urgente ante a ausência de regulamentação do art. 8º da Convenção de Diversidade Biológica.
O Brasil ratificou a Convenção por meio do Decreto Legislativo n. 485/2006. Nessa ocasião, outros 43 países já o haviam feito, o que permitiu que a Convenção entrasse em vigor em 18 de março de 2007 (3 meses após a adesão do 30º Estado).
Importante destacar que, o Brasil é um dos 24 membros do Comitê Intergovernamental da Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, criado em Paris, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O país foi escolhido pelos 57 primeiros Estados que, ao ratificar a convenção - que afirma o direito de as nações terem políticas de proteção de suas respectivas expressões culturais -, permitiram que o comitê entrasse em vigor na data supra referida. O comitê é formado, além do Brasil, por Guatemala, México, Alemanha, França, Grécia, Áustria, China, Índia, África do Sul, Mali, Tunísia, Omã, Albânia, Burkina Fasso, Canadá, Croácia, Eslovênia, Finlândia, Lituânia, Luxemburgo, Maurício, Santa Lúcia e Senegal.
Da região latino-americana, assinaram a convenção Brasil, Guatemala, México, Bolívia, Peru, Equador, Uruguai, Panamá, Chile, Níger, Santa Lúcia, Jamaica e Cuba. A convenção foi ratificada também por Romênia, Croácia, Belarus, Espanha, Mônaco, Moldávia, Albânia, Finlândia, Áustria, França, Suécia, Dinamarca, Eslovênia, Estônia, Eslováquia, Luxemburgo, Lituânia, Malta, Bulgária, Chipre, Irlanda, Grécia, Noruega, Islândia, Andorra, Alemanha, Portugal, Itália, Armênia e Macedônia. Completam a lista Canadá, China, Índia, Bangladesh, Jordânia, Omã, Tunísia, Maurício, Djibuti, Togo, Madagascar, Burkina Fasso, Senegal, Mali, Camarões, Namíbia, África do Sul, Níger, Costa do Marfim e Gabão. Ao todo são 63 países.

2. O conhecimento tradicional como propriedade intelectual – Tutela subjetiva – Dano moral e material à comunidade tradicional
Os Direitos de Propriedade Intelectuais Tradicionais são definidos por Remédio Marques como sendo o “saber-fazer’(kow-how) relativo aos recursos genéticos animais e vegetais. Ressalta o citado mestre, que a despeito desses conhecimentos e informações integrarem o domínio público, constituem elementos da herança cultural dessas populações, noutras palavras, constituem formas mentais e intelectuais suscetíveis de sobre elas serem constituídas posições jurídicas subjetivas exclusivas e oponíveis erga omnes (property rights).
A reivindicação das comunidades indígenas diz respeito ao direito a controlar o acesso, a divulgação e o uso de seus conhecimentos e expressões culturais tradicionais. Protestam, ainda, tanto pela obtenção de direitos de propriedade intelectual sobre as expressões culturais tradicionais para comercializá-las e/ou impedir que outros a façam, quanto à proteção defensiva para impedir a obtenção de direitos de propriedade intelectual sobre as expressões culturais tradicionais e suas derivações.
Dentro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual-OMPI existe um Comitê intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore, que é composto por 250 representantes de Estados, comunidades indígenas e locais e diversas organizações não-governamentais e intergovernamentais, entre elas a UNESCO . Esse Comitê, após as decisões de abril de 2006 em Genebra, deu sinais de que pretendia propor adaptações inovadoras aos direitos de propriedade intelectual existentes, assim como costurar leis "inteiramente novas, concebidas em função das particularidades dos conhecimentos tradicionais e das expressões culturais tradicionais e das necessidades de seus titulares e guardiões". Contudo, essa matéria tem progredido com lentidão e com balizas visíveis e consideráveis para que se alcance um consenso mais democrático.
Com relação a participação das comunidades indígenas e locais, nessa 9ª reunião em Genebra foi acatada a participação de oito membros na Junta Assessora, mas apenas na qualidade de observadores. Mas essa participação das comunidades na negociação do acordo não deixa de ser um avanço, pois elas podem colaborar para a definição de um sistema sui generis apropriado, capaz de afirmar o papel e o valor dos conhecimentos tradicionais, e dos direitos das comunidades tradicionais assim como dos consumidores . Todavia, a apreciação de questões polêmicas como a das expressões culturais e tradicionais/folclore, dos conhecimentos tradicionais e dos recursos genéticos foi postergada, por questões meramente burocráticas, é que o Comitê decidiu considerar os documentos encaminhados por várias delegações e marcou uma nova sessão para deliberar quanto aos conteúdos apresentados.
Santilli faz ressaltar que, a par das tentativas de adaptação do sistema patentário, defendidas internacionalmente pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual-OMPI e, nacionalmente pelo Instituto Nacional de Propriedade Intelectual-INPI, continuam sendo desconsideradas as próprias características e contextos culturais em que são produzidos, a uma, porque os conhecimentos tradicionais são produzidos e gerados de forma coletiva, a partir de ampla troca e circulação de idéias e informações e transmitidas oralmente, de uma geração à outra.
Ao reverso, o sistema de patentes protege as inovações individuais , promovendo uma fragmentação dos conhecimentos e a dissociação dos contextos em que são produzidos e compartilhados coletivamente. Além disso, destaca, só serem patenteáveis as invenções que tenham aplicação industrial e muitos conhecimentos tradicionais não têm aplicação industrial direta, ainda que possam ser utilizados para desenvolver produtos ou processos que a tenham.
Ademais, como seria possível definir um marco temporal de vigência para quaisquer direitos intelectuais sobre conhecimentos tradicionais, cuja origem exata no tempo dificilmente poderá ser precisada e que serão transmitidos de forma indefinida no tempo, para outras gerações ? Essa característica contrariaria, de igual modo, o sistema de patentes que têm prazo de vigência determinado, conferindo monopólio temporário sobre a utilização do objeto, o que, mais uma vez, se confrontaria com a própria essência do processo de geração de conhecimentos tradicionais, a partir do livre intercâmbio de idéias e informações entre comunidades locais e populações tradicionais.
Realmente, é crítica unânime, nos trabalhos elaborados acerca do tema, as dificuldades de adequação do Sistema Internacional de Patentes, consubstanciado no Acordo TRIPS , precipuamente no seu art. 27, 3 (b), com a Convenção da Diversidade Biológica, criando assim uma certa insegurança jurídica, porque este tema envolve de um lado o interesse de conservar a biodiversidade e preservar o conhecimento tradicional, conceitualmente consagrado na CDB e de outro lado esbarra na proteção do interesse privado no Sistema Internacional de Patentes, vigorosamente defendido pelo Acordo TRIPS.
A interpretação desses dois Tratados Internacionais, Convenção de Diversidade Biológica-CDB e o Acordo TRIPS, propiciou que surgissem diversas tendências possíveis para a solução do impasse, como: harmonização, confronto, subordinação, compatibilização ou construção de convergência.
Remédio Marques comenta os posicionamentos de subordinação e o da fusão com igualdade e comunhão de objetivos, exatamente em relação às estratégias de desenvolvimento versus conservação do ambiente. Para ele, contudo, não ocorre nem uma coisa e nem outra, pois a proteção do ambiente e dos recursos biológicos naturais não seria, a seu ver, incompatível com as finalidades neo-liberais consagradas no Acordo que criou a OMC e um de seus Anexos denominado Acordo TRIPS .
Noutro prisma, Calestous Juma e Sanchez lançam uma expressão que traduz a complexidade da governança existente na temática de proteção do conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios, qual seja a biodiplomacia (biodiplomacy).
Marin em sua tese de doutoramento, defende a criação de uma espécie de marca sui generis para as variedades vegetais e entende que a “indicação geográfica” da variedade vegetal, de acordo com o Acordo TRIPS, embora não proteja os conhecimentos tradicionais e nem venha a resolver diretamente o problema da repartição de benefícios em caso de apropriação de conhecimentos tradicionais associados, basicamente preveniria a utilização de uma falsa indicação, servindo como um indicador do local onde a espécie de planta original foi acessada. Para a autora, a indicação do local onde as plantas - fontes primárias - foram acessadas, poderia ser um sinal para provar que tinha havido contribuições dos agricultores locais a desenvolver a nova variedade através de suas técnicas tradicionais de reprodução, poderia ser uma prova importante a ser utilizada na partilha equitativa dos benefícios derivados da utilização da variedade vegetal acessada em conformidade com a CDB. Ademais, um sistema sui generis de propriedade intelectual, em conformidade com o Acordo TRIPS, obrigaria o utilizador da variedade vegetal protegida a pagar royalties.
Outro mecanismo proposto para defesa dos conhecimentos tradicionais pela autora seriam “os segredos comerciais”, também com base no TRIPS. Embora não conceda direitos exclusivos ao titular como é o caso das patentes, mas pelo menos não permitira que terceiros utilizassem de forma comercial desonesta. Esse instrumento poderia ser utilizado para impedir a utilização dos conhecimentos tradicionais relacionados com plantas medicinais, só que a comunidade indígena também ficaria proibida de divulgar.
Por último, Marin aponta a fórmula estabelecida pelo modelo idealizado pela OMPI, no qual os recursos genéticos seriam entendidos como “expressão do folclore”, fugindo assim das incompatibilidades do sistema de patentes, já que seria uma tradição viva e ainda em desenvolvimento e não memória do passado. Neste sentido, as manifestações dos saberes tradicionais seriam consideradas parte do folclore, e poderiam ser protegidas ao abrigo do Direito de Propriedade Intelectual. Como tal, os povos indígenas poderiam manter o direito exclusivo sobre as suas invenções biológicas sempre, além de subordinar o acesso aos mesmos para o grupo de anuência prévia. O modelo propõe que as agências estatais cobrem taxas de usuários de folclore. Apesar dessa idéias ainda não terem conseguido influenciar as legislações nacionais, induziram a elaboração da Recomendação da UNESCO sobre a proteção da cultura tradicional e folclore.
No caso do Brasil, especificamente, alguns autores, como bem expressa Santilli , ao defenderem a construção de um regime jurídico sui generis para a proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, aponta como princípios fundamentais : (1) proteção dos direitos territoriais e culturais desses povos, considerando os elementos tangíveis (territórios e recursos naturais) e intangíveis (conhecimentos, inovações e práticas); (2) proteção da integridade intelectual e cultural, bem como dos valores espirituais associados aos conhecimentos tradicionais, com tratamento equitativo da ciência ocidental e do saber tradicional, respeitada as diferenças dos fundamentos científicos e epistemológicos próprios, além do significado do termo “ tradicional”); (3) a impossibilidade de uma simples transformação dos conhecimentos tradicionais em mercadorias ou commodities, a serem negociadas no mercado, representando uma subversão da lógica que norteia a própria produção desses conhecimentos.
Os elementos fundamentais nos quais esse regime jurídico sui generis deveria se basear residiria, no pluralismo jurídico e no reconhecimento da diversidade jurídica existente nas sociedades tradicionais, expressão de sua diversidade cultural, libertando-se de concepções positivistas e formalistas do direito de que a lei conteria todo o direito e com ele se confundiria. Nesse sentido, Santilli sustenta que os artigos 6 e 57 do Estatuto do Índio, Lei 6.001/73, abririam uma porta para o reconhecimento das instituições jurídicas indígenas.

3. Conclusão

Não nos parece que a tutela subjetiva comentada neste trabalho - que encara os conhecimentos tradicionais associados como bem material - seja a melhor saída para a sua proteção, até porque, as patentes só têm efeitos durante um determinado período de tempo, findo o qual, o direito cessa de vigorar e, assim como o direito autoral, visa proteger o resultado do processo criativo . Por outro lado a tutela objetiva – que protege o conhecimento tradicional como bem cultural e incorpóreo, se de um lado não tem prazo de validade e não exige os requisitos exigidos pelo sistema patentário, de outro tem titularidade diversa, o Estado. A melhor saída parece ser mesmo a criação de um regime de proteção sui generis para poder ocorrer a repartição de benefícios com a comunidades indígenas, adaptando-se finalmente o acordo TRIPs à Convenção de Diversidade Biológica.

NOTAS DE RODAPÉ:

1. Na terminologia da UNESCO o termo “proteção” significa a adoção de medidas direcionadas à preservação, salvaguarda e valorização. Informação disponível no site: http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224POR.pdf, p. 23, acessado em 04/05/2009.
2. A autora é doutoranda do programa “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI” da Universidade de Coimbra/Portugal, mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas, Procuradora de Justiça titular da 7ª Procuradoria do Ministério Público do Estado do Amazonas e professora concursada e titular da disciplina de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Amazonas.
3. A Declaração encontra-se disponível no site da UNESCO, Comissão de Portugal, a saber: http://www.unesco.pt/cgi-bin/cultura/docs/cul_doc.php?idd=15, acessado em 04/05/2009.
4. Nesse documento a UNESCO aproxima sua compreensão sobre a proteção aos conhecimentos tradicionais ao que dispõe a Convenção de Diversidade Biológica. A defesa da proteção se faz presente na estreita relação com a proteção ao meio ambiente, em particular no que tange ao trato com os recursos naturais.
5. Declaração de Istambul, 2002.
6. Aprovada na 32a Reunião da UNESCO, em Paris, 2003.
7. O conceito de sustentabilidade ambiental foi inserido, segundo Manzini e Vezzoli (2005, p. 27), em 1987, quando na Noruega foi elaborado o documento Nosso Futuro Comum (também conhecido como Relatório de Brundthland) pela Comissão Mundial do Ambiente e Desenvolvimento - CMMAD. MANZINI, Ezio; VEZZOLI, Carlo. O Desenvolvimento de Produtos Sustentáveis: os requisitos ambientais dos produto industriais. 1.ed.1.reimpr.São Paulo: Edusp, 2005. Todavia o termo sustentabilidade aplicado à causa ambiental teria surgido como um conceito tangível na década de 1980 por Lester Brown, que foi o fundador do Wordwatch Institute. A definição que acabou se tornando um padrão seguido mundialmente com algumas pequenas variações representa o seguinte: Diz-se que uma comunidade é sustentável quando satisfaz plenamente suas necessidades de forma a preservar as condições para que as gerações futuras também o façam. Da mesma forma, as atividades processadas por agrupamentos humanos não podem interferir prejudicialmente nos ciclos de renovação da natureza e nem destruir esses recursos de forma a privar as gerações futuras de sua assistência. Disponível em http://tvecologica.wordpress.com/2009/05/28/conceitos-importantes-meio-ambiente-sustentabilidade-ecoturismo-educacao-ambiental-e-educomunicacao/, acessado em 05/05/2009. A definição de desenvolvimento sustentável da World Commission on Environment and Devolopment aponta para um desenvolvimento econômico e social capaz de atender às necessidades desta geração, não comprometendo o atendimento das necessidades das gerações futuras. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/3/3146/tde-17112006-125511/, acessado em 05/05/2009.
8. REMÉDIO MARQUES, João Paulo Fernandes. Opus cit. p. 1381.
9. Informações disponíveis no site http://www.wipo.int/portal/index.html.en acessado em 05/05/2009.
10. Também colaborará no sentido de avaliar se é desejável e prático incorporar direitos sobre o conhecimento tradicional ao sistema de proteção dos direitos de propriedade intelectual e quais seriam as conseqüências de tal incorporação. Para isso é importante que sua participação seja efetiva e que se cogite a possibilidade de "buscar normas multilaterais para assinar tais direitos... sem etiquetá-los como direitos de propriedade intelectual" (KHOR, 2003, p. 43).
11. SANTILLI, Juliana. A Proteção Jurídica à Biodiversidade e aos Conhecimentos Tradicionais Associados in Direitos Humanos & Poder Econômico: conflitos e alianças. Curitiba: Juruá Editora. 2ª tiragem. 2006, p.291.
12. Ainda que as inovações sejam coletivas, seus autores/inventores possam ser individualmente identificados.
13. O Acordo TRIPS é um dos Anexos do Tratado Internacional que criou a Organização Mundial do Comércio-OMC e instituiu o Sistema Internacional de Patentes.
14. REMÉDIO MARQUES, João Paulo Fernandes. Desenvolvimento Sustentável, Recursos Biológicos e Propriedade Intelectual. Revista de Ciência e Cultura da Universidade Lusíada do Porto. n. 1 e 2. Direito. Coimbra Editora, 2003. p. 335/343.
15. CALESTOUS JUMA e VICENTE SANCHEZ. Biodiplomacy: Genetic Resources and Internacional Relations. Nairobi, Kenya: ACTS Press. African Centre of Technology Study. 1994. Disponível em http://books.google.com.br/books?id=YIAKohEItZoC&printsec=frontcover, acessado em 09/07/2009. Por Biodiplomacia entende-se as negociações internacionais para chegar a acordos sobre os assuntos relacionados aos recursos biológicos e ecológicos essenciais a serviços prestados pelo ecossistema da Terra. Com contribuições de algumas das principais autoridades em biodiplomacia, o livro descreve as formas específicas de como implementar a Convenção da Diversidade Biológica. Essa obra ressalta o fato de que a prevalência do paradigma de desenvolvimento deve ser substituído por novas abordagens que assentam nos princípios do desenvolvimento sustentável. Relações internacionais também devem ser redefinidas de acordo com estas linhas. Na verdade, este está começando a ocorrer, e um número de nações estão agora tratando a conservação da diversidade biológica como uma questão de segurança nacional. Esta mudança demonstra o fato da biodiplomacia não ser apenas uma questão de relevância para os quase quarenta tratados internacionais que tratam diretamente com a conservação in situ, mas representa uma mudança fundamental no sentido de um novo mundo.
16. O artigo 22 º do Acordo TRIPS define indicações geográficas como "indicações que identificam um bem como originário do território de um membro, ou de uma região ou localidade desse território, onde uma determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuível à sua origem geográfica”.
17. Como exemplo, cita que as plantas amazônicas acessadas por empresas estrangeiras poderiam ser indicações geográficas protegidas ao abrigo do qual poderia servir como arte anterior, a fim de evitar as suas patentes no estrangeiro, apenas porque elas não são conhecidos em um país estrangeiro. MARIN, Patrícia Lúcia Cantuária. Providing Protection for Plant Genetic Resources: Patents, Sui Generis System and Biopartnersships. Kluwer Law International. 233 Spring Street, New York, New York 1 001 3-1 578. Printed in U.S.A, p. 71.
18. MARIN, Patrícia Lúcia Cantuária. Opus cit. p. 79.
19. MARIN, Patrícia Lúcia Cantuária. Opus cit. p. 73.
20. MARIN, Patrícia Lúcia Cantuária. Opus cit. p. 74/75.
21. SANTILLI, Juliana. Opus cit. p. 294/295.
22. SANTILLI, Juliana. Opus cit. p. 293/294.
23. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3A ed. Rev. e atual. São Paulo: Alfa Omega, 2001.
24. SANTOS, em várias obras, especificamente na sua tese de doutoramento apresentada na Universidade de Yale nos EUA, no qual estudou as estruturas jurídicas internas de uma favela no Rio de Janeiro, vem divulgando estudos sociológicos demonstrando a existência de ordens jurídicas paralelas ao direito estatal. SANTOS, Boaventura de Sousa. El Derecho de los oprimidos : La construcción y La reprodución de La legalidad em Pasárgada in Sociologia Jurídica Crítica: para um nuevo sentido común em El derecho. Madrid: Editorial Trotta. 2009. p. 131/215 (Capítulo 4). Um texto mais atual acerca do tema pode ser encontrado nessa mesma obra denominado El Pluralismo Jurídico Y Las Escalas Del Derecho: Lo Local, Lo Nacional Y Lo Global nas páginas 52/80 (Capítulo 2) e El Estado Heterogêneo Y El Pluralismo Jurídico em Mozambique, p 254/289.
25. SANTILLI, Juliana. Opus cit. p. 297.
26. PINTO, Miguel Correia e GODINHO, Manuel Mira. Conhecimentos Tradicionais e Propriedade Intelectual. Sociologia, problemas e práticas. Revista do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CES), n. 42. Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Oeiras: Celta Editora. 2003, p. 98.

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